“O tempo é o senhor da razão”, narra o implacável e infalível
dito popular. Da mesma forma, a História é a mestra do tempo (alguém já deve
ter escrito isso, só não me lembro quem foi). Vivenciei essas divagações
enquanto lia a mais recente biografia de Walt Disney escrita pelo
norte-americano Neal Gabler: Walt Disney
– O Triunfo Da Imaginação Americana (Editora Novo Século, 712 páginas). Um
dos personagens mais famosos de nosso tempo – mesmo já tendo falecido há quase
cinquenta anos – Disney já foi alvo de biografias depreciativas, de
historiadores (todos, ou quase todos, de orientação marxista) que faziam
questão somente de exaltar seu ‘lado negro’. Disney teria sido simplesmente um capitalista
selvagem e opressor, um verdadeiro demônio a serviço do imperialismo do Tio
Sam. Felizmente, Gabler chega com seu livro para destruir o simplismo
maniqueísta daqueles autores bobocas, pondo todos os pingos nos is e mostrando
Walt Disney como realmente foi: um homem com suas virtudes e seus defeitos, as
primeiras suplantando amplamente os segundos. Além dos relatos de familiares e
ex-parceiros de Disney, entrevistas e artigos publicados em revistas e jornais
ao longo dos anos, Gabler teve acesso a documentos que nenhum outro historiador
teve a respeito dele: os arquivos e anotações dos estúdios, as atas de
reuniões, o que permitiu uma detalhada biografia desse incrível personagem do
século XX, como jamais foi feita.
Desde o início da leitura
percebemos que o autor procura entender a personalidade de Disney e que,
segundo ele, foi moldada em sua tenra infância e início de adolescência na
virada das duas primeiras décadas do século passado, vividas numa pequena
cidade do interior do Kansas, Marceline. Foi esse cenário idílico onde vivia
numa comunidade fraterna, que Disney buscaria o resto de sua vida com suas
grandiosas realizações. Ainda que se tornasse um homem do mundo, um cosmopolita
que sempre viajava quando tinha chance, dentro de seu coração pulsava a lembrança
inesquecível de Marceline.
E no decorrer das páginas dessa
monumental biografia, vamos refazendo os conceitos torpes que nos foram
passados pelos historiadores marxistas. Uma das mais conhecidas acusações: a de
que Disney teria traído seu parceiro de trabalho Ub Iwerks, e que este seria o único
criador do Mickey, tendo Walt simplesmente se usurpado do personagem símbolo
dos estúdios Disney. Gabler desmente isso com tranquilidade, e mais: deixa
provado que foi Iwerks quem abandonou, por livre e espontânea vontade, os
estúdios Disney, preterindo-o por outro comandado por um desafeto do
ex-parceiro (Disney recebeu-o de volta, décadas depois).
Ah, e não podemos nos esquecer
do maior ‘pecado’ de Walt Disney, segundo os detratores marxistas: o seu
anti-comunismo ferrenho. Bem, aí os detratores têm razão. Afinal de contas, como
um homem como Disney, um empreendedor incansável, forjado na iniciativa privada,
um artista criativo como ele iria simpatizar com idéias coletivistas? E Gabler
nos mostra que a militância anti-comunista de Walt Disney recrudesceu por um
motivo muito compreensível, durante os fatos ocorridos na virada dos anos 30 e
40 do século passado, quando alguns de seus ex-funcionários, desafetos dele,
cerraram fileiras com os sindicalistas e piqueteiros grevistas que quase
levaram a bancarrota o seu estúdio. “Disney mandou a polícia descer o sarrafo
nos grevistas”, gritam os detratores. Primeiramente, ainda que já fosse rico e
famoso naquela época, ele não tinha poder de polícia. E Gabler explica que não
foram exatamente os policiais que atacaram os grevistas (estes, talvez fossem todos
uns ‘santinhos’, não é? Nenhum deles rancoroso, nenhum beligerante). Diante dos
piquetes que ameaçavam seu estúdio, Disney recorreu a polícia; o comissário
disse-lhe que não poderia dispor de homens para defender sua propriedade. Walt
não pensou duas vezes e contratou cinquenta guardas particulares – e estes sim,
desceram o sarrafo nos grevistas impertinentes e agressivos. Gabler vai mais
além: explica que, após as greves, o ambiente familiar que dominava o estúdio, diferenciando-o
de todos os demais em Hollywood, deteriorou-se para sempre – e a partir daí
sim, Disney foi se tornando, ao longo dos anos, um patrão autoritário e
insensível, por vezes demitindo até mesmo companheiros de longa data. Diante do
que se passou no episódio das greves, não impressiona o fato de Disney ter se
engajado na militância anti-comunista, depondo nas comissões do Congresso e denunciando
a prática dos marxistas infiltrados em Hollywood – e vejam que coisa, Gabler
prova por A + B que os líderes sindicais que atacavam os estúdios Disney
eram... comunistas! E de carteirinha, todos filiados ao ‘partidão’ de lá.
(um pequeno
parêntese: para saber mais da influência comunista nos anos 30 e 40 em Hollywood,
dois livros indispensáveis: ‘Hollywood Party’ de Kenneth Lloyd Billingsley e
‘Primetime Propaganda’, de Ben Shapiro – ambos ainda sem traduções em
português, vamos ver se, depois do que vimos em 2013, com os livros de autores conservadores
sendo, destacadamente, os mais vendidos no Brasil, se os editores daqui se
tocam e traduzam esses e tantos outros livros importantes que vão deixar a
esquerdalha em polvorosa!)
A biografia de Gabler vai
mostrando, de forma fascinante – tal como a vida do biografado – a ascensão de
Walt Disney no mundo do entretenimento, e sua influência cada vez mais intensa
na sociedade americana e no resto do mundo. Uma trajetória marcada por muita
luta, trabalho duro, vivendo sempre a um passo da falência, arriscando seus
recursos continuamente, algo impensável para os detratores e seus livros
idiotas. E, ao lado de tudo isso, a vida pessoal e familiar (marido fiel e pai
extremamente amoroso), a participação na Cruz Vermelha durante a Primeira
Guerra Mundial, as viagens, o contato com os companheiros de trabalho – nem
sempre harmonioso.
Neal Gabler define perfeitamente a importância de Walt Disney
para a contemporaneidade:
Ele mudou o mundo. Criou uma forma de arte e depois produziu vários
clássicos indiscutíveis com ela (...) Propiciou fuga para a Depressão
[econômica, da década de 30], força
durante a [Segunda] guerra, e
conforto depois [destacadamente, o projeto da Disneylândia], (...) Foi pioneiro dos filmes coloridos e da
televisão em cores. Reinventou o parque de diversões e, ao fazer isso, alterou
a consciência americana, para melhor ou pior, de forma que seus compatriotas
preferiam a ilusão à realidade, o falso ao autêntico. Estimulou e popularizou a
conservação do meio ambiente, a exploração espacial, a energia atômica, o planejamento
urbano e uma consciência histórica mais profunda.
Ufa! Bem mais do que um simples
‘explorador capitalista anti-comunista’, hein? Apenas a lamentar que o livro
quase não fale a respeito das Histórias-em-Quadrinhos, mas isso também é
coerente, afinal, Disney parou de desenhar muito cedo, por volta dos trinta
anos de idade já não queria saber de prancheta e encarregou seus mais
talentosos artistas, como Floyd Gottfredson e Carl Barks, para cuidar das tiras
de jornais e dos gibis.
A História, soberana, colocando as coisas em seus devidos
lugares, graças ao esforço e ao talento de gente como Neal Gabler. (JS)