Vez por outra lemos algum
artigo ou crônica que realmente nos entusiasmam. Isto ocorreu recentemente
comigo, ao me deparar com um texto escrito pelo advogado dr. Fábio Blanco em
seu blog (www.fabioblanco.com.br),
intitulado ‘A Retomada da Tradição e a Desilusão da Rebeldia’ (que pode ser
lido na íntegra aqui http://www.fabioblanco.com.br/a-retomada-da-tradicao-e-a-desilusao-da-rebeldia/).
No referido texto, dr. Blanco comenta suas impressões ao ler outra crônica,
assinada pelo jornalista e biógrafo Ruy Castro para o jornal Folha de São Paulo
(íntegra aqui http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/178975-em-vao.shtml).
Neste artigo, Castro lamenta o reaparecimento de atitudes tradicionalistas
entre os jovens, como por exemplo o esforço para se manter virgem antes do
casamento e a festa de debutantes das meninas de 15 anos de idade. O autor
lamenta que as lutas da ‘geração 68’ estejam perdendo força, sendo contestadas
por um crescente número de pessoas, especialmente os jovens. Analisando essa
crônica, dr. Blanco indaga:
(...)
essa percepção de Ruy Castro deveria servir para colocar diante dele e os de
sua geração, no mínimo um questionamento: será que a rebeldia dos anos 60 não
foi um exagero, uma explosão antinatural que, mais cedo ou mais tarde, perderia
seu vigor? E outra pergunta, inafastável, deveria também ser feita: será que a
geração atual, nascida já sob os efeitos das ruas de 68, não percebeu que o
legado daquela rebeldia foi apenas desilusão, decepção, e ausência de sentido?
Na verdade, quando olha para a frente, para os sonhos prometidos por aqueles
rebeldes, a juventude atual não consegue ter esperança. Ela percebe que a
destruição pelas drogas, as mães solteiras, os pais irresponsáveis, os
relacionamentos fugazes, a religiosidade desespiritualizada e a destruição
familiar foram a principal herança deixada pelos movimentos que seus pais
participaram.
Quem
leu a biografia dedicada à cantora e atriz Carmem Miranda escrita por Ruy
Castro (que o autor transformou num imenso livro de fofocas), não se surpreende
com o teor de sua crônica na Folha de São Paulo lamentando o arrefecimento
popular da contracultura (ainda longe de ser demolida, mas cada vez mais
encontrando oposição). No livro biográfico que é chamado Carmem, por diversas vezes Castro se mostra inconformado com o fato
de que a grande atriz luso-brasileira (muito mais brasileira do que lusa),
vivendo um infeliz casamento com um sujeito que não lhe concedia o divórcio,
recusava-se a se casar novamente ou mesmo conviver com outra pessoa – pois
Carmem Miranda fora criada num lar católico, e as tradições católicas a levaram
a tomar aquela decisão. Isso, para Ruy Castro, era inconcebível – bem, afinal
de contas não devemos exigir muito do jornalista, incapaz de entender uma decisão
moral como a de Carmem Miranda, afinal, como poderia se o ápice de sua
espiritualidade é representada por copos de cerveja num bar do Leblon? (preciso
ser justo, e lembrar que nas biografias posteriores, de Nélson Rodrigues e Mané
Garrincha, Castro saiu-se muito melhor).
Já o dr. Blanco compreende a estupefação de Ruy
Castro com o reaparecimento dos ideais tradicionalistas:
(...) homens como Ruy Castro
nunca entenderão isso, pois, para eles, aquelas coisas antigas jamais tiveram
valor algum. Eles, insensibilizados por uma ideologia revolucionária, que tem
em seu espírito muito mais a destruição do que qualquer outra coisa, chegaram a
conclusão de que as formas tradicionais podiam ser dispensadas como se lançaram
fora as anáguas. Acreditaram que valores seculares podiam ser substituídos como
se substituem as modas. O que resta para eles, portanto, é espernear, reclamar
e chorar o desfazimento de suas utopias. Repensar suas ideologias, porém,
jamais serão capazes de fazer. Tudo porque eles não conseguem enxergar as
tradições como algo além de ultrapassado. São tão insensíveis, tão cegos, tão
desvirtuados que valores milenares, em suas perspectivas distorcidas, não valem
mais do que um sutiã velho [ou um copo de cerveja num bar do
Leblon, acrescento]
Não
quero aqui discursar sobre a virgindade, só lembrando a diferenciação que Santo
Agostinho fez daqueles que a vivem sinceramente, pelo reino dos Céus, daqueles
que a vivem por auto-suplício egoísta. Minha intenção aqui é semelhante àquela
do dr. Blanco, a de exaltar o reaparecimento de pessoas que lutam a favor de
valores tradicionalistas, contra as pestilências da contracultura. E, como não
poderia deixar de ser, acabei refletindo sobre esse tema no universo das
Histórias-em-Quadrinhos, que é meu campo de atuação e assunto que mais
interessa aos leitores desse blog.
Creio
que poucos veículos de comunicação foram tão afetados pela ideologia da
contracultura quanto as Histórias-em-Quadrinhos. Tudo começou, é claro, nos
anos 60 do século XX, com Robert Crumb e seus underground comics, além das
perversões escancaradas nos trabalhos dos quadrinhistas europeus. Como negar a
influência desses trastes nas gerações de artistas que os sucederam? Foi
tamanha que, a partir dos anos 80, até os quadrinhos de super-heróis americanos
foram contaminados por isso. A primeira consequência óbvia, foi a diminuição do
número de leitores de Quadrinhos. Se no passado uma edição do Fantasma de Lee Falk chegava a ter
tiragem de 200 mil exemplares, hoje quando uma publicação consegue vender 10
mil exemplares, ouve-se rojões espoucando nas redações. Não por acaso, os gibis
mais vendidos por aqui (exceto os da Turma da Mônica) sejam os
tradicionalíssimos Tex e Zagor. Outra consequência foi a
disseminação daqueles valores perversos entre a elite cultural e artística dos
países, coisa que se reflete com força no Brasil em programas televisivos tais como
mtv, pânico na tv, cqc, lendários, porta dos fundos e outras asneiras. Se antes
os humoristas eram influenciados por Charles Chaplin, Gordo & Magro, Irmãos
Marx, hoje temos a geração pós-68 totalmente influenciada por Robert Crumb e
seus seguidores, como Angeli – a obra deste autor merece até uma crônica
específica, comentando a devastadora influência que teve e ainda tem não só na
cultura, mas igualmente na política brasileira. Basta olharmos dois movimentos
que são a representação fidedigna de seus personagens: os black blocs e a
destruição desenfreada que promovem, seriam os filhos do Bob Cuspe, o roqueiro
punk que é o símbolo da intolerância, cuspindo em qualquer um que discorde de
seu ponto de vista; já as autodenominadas mulheres vadias, estas seriam as
filhas da Rê Bordosa, promíscuas, drogadas, abortistas. Mas deixemos de lado as
desoladoras influências da obra de Angeli, e sigamos.
A principal indagação
que formulei após a leitura do artigo do dr. Blanco, foi a seguinte: será
possível que a ‘contra-contracultura’ poderá chegar aos Quadrinhos? Ou seja,
será que um dia os quadrinhistas vão se tocar e voltar a tratar de temas mais
edificantes em seus trabalhos, ou vão continuar criando a partir de influências
como a de Angeli, Alan Moore, Laerte, Neil Gaiman e quejandos? No atual mercado
brasileiro dos Quadrinhos, só vejo dois exemplos destoantes: o de Lacarmélio
‘Celton’, e o da Júpiter II – mas não podemos sequer ser inseridos no tal
mercado, pois nossos gibis sequer chegam nas bancas, vendidos somente no
corpo-a-corpo ou nos meios virtuais. E continuamos sendo quase que totalmente
desprezados pela imprensa brasileira – Celton já teve generoso espaço nos
jornais mineiros e alguns programas de televisão, mas a Júpiter II, mesmo já há
dez anos publicando gibis de autores brasileiros – incluindo de alguns grandes
mestres dos nossos Quadrinhos – nunca teve uma linha sequer nos jornalões
brasileiros, e basta algum autor estrangeiro publicar uma HQ sobre prostitutas
que ganha destaque nos cadernos de arte. Além de não termos espaço algum na
grande mídia, ainda somos incessantemente atacados, ofendidos e desrespeitados
por um razoável número de blogueiros.
Reconheço que a venda de
revistas ou livros de Histórias-em-Quadrinhos, com algumas raras exceções, já
não empolga mais ninguém. Com a Júpiter II o quadro é ainda mais desolador,
pois só existe graças a posição social privilegiada de seu editor, um pequeno
burguês abastadinho que consegue manter as publicações e assim sobreviver trabalhando
exclusivamente com elas, a despeito da concorrência capitalista – mas, é claro,
não esperem que isso dure por muito mais tempo (já posso prever a festa dos
blogueiros caluniadores). Deste modo, creio que a luta contra as imundícies da
contracultura ainda deve levar algum tempo – muito tempo – para que ela seja
varrida não só dos gibis, mas da História da humanidade.
Ah,
e por favor, não pensem que escrevo esta crônica por ser algum anjo puro e
imaculado, longe disso: sou também um filho do pós-68, filho bastardo de Herbert
Marcuse e Antonio Gramsci. Influenciado que fui por toda essa josta, por anos
chafurdei nas mais lamentáveis ignomínias, exaltando o hedonismo, as perversões
sexuais, as músicas agressivas e misantropas, o consumo de drogas (já devo ter
fumado uma tonelada de maconha, além de ter experimentado tantos outros
entorpecentes, como qualquer maconheiro), pensando realmente que participando
de baladas roqueiras e da promiscuidade sexual eu assim estaria “aproveitando a
vida”, quando na verdade eu a destruía, paulatinamente. E, para minha desgraça
diante do Reino Celeste, produzi livros, fanzines e filmes divulgando todo
aquele excremento moral. Quero dizer, sou imundo como é a maior parte da
humanidade. Mas o tempo e a experiência me mostraram outro caminho, que procuro
trilhar, mesmo com minhas degradantes limitações. Hoje, sou um desertor das
imundícies. Entre a contracultura e a tradição, esta última pode contar com
todos os meus esforços, no combate àquela outra. (JS)